O ateísmo é fenômeno complexo e multifacetado. Especialmente há um tipo de ateu que diz não acreditar em Deus por falta de evidências. O filósofo e matemático W.K. Clifford (1845-1879) formulou a sentença mais robusta desse tipo de ateísmo em seu livro A Ética da Crença: “é sempre errado, em todo lugar e para qualquer um, acreditar em alguma coisa com base em provas insuficientes (crer sem evidências suficiente)”.
Vamos aceitar a provocação e perguntar se realmente é sempre errado acreditar quando nos carece evidências. Pois, se assim for, por consequência lógica e coerência moral, pode-se concluir que este tipo de ateísmo não aceitará manter qualquer relação de amor ou de amizade por ser incapaz de provar e evidenciar seu amor por alguém ou provar e evidenciar o amor ou amizade de alguém por ele. A beleza do amor e da amizade não está justamente na fidelidade?
Quando alguém diz “eu te amo”, a expressão não traz a evidência que garantiria a sua veracidade. Trata-se de um profundo ato de confiança, de uma abertura para o outro. Entre o discurso erótico e o discurso religioso há uma semelhança de natureza. Eles partilham, pelo menos nesse ponto, dos mesmos dilemas humanos. E, cá entre nós, os sérios problemas filosóficos não se reduzem a puros jogos de linguagem. A experiência de amor é das mais concretas experiências humanas.
A expressão “eu te amo”, por exemplo, não tem outra referência a não ser a experiência imediata interna de quem a pronuncia. É tal como a experiência religiosa: não há como comprovar ou verificar a sua veracidade por algum tipo de experiência pública. “Provas de amor” são todas pragmáticas. Noutras termos: só podem ser verificadas pela experiência de conduta e mudanças de hábitos motivados por crenças — não há garantias de veracidade lógica ou científica na expressão “eu te amo”. O grau de incertezas e dúvidas manifesta a fragilidade concreta da vida humana. Amar é correr riscos.
O tipo de “verdade” na expressão “eu te amo” não gera uma referência ao qual possa ser evidenciada e verificada em comunhão direta. Trata-se, pelo contrário, do lastro criado pela relação intersubjetiva, consentida por meio de um ato de fé. O amor se consolida na fé: o assentimento àquilo que é inacessível ao conhecimento teórico, porém consentido naquilo que é necessário pressupor como condição fundamental para atar vínculos maduros entre as pessoas.
O ato crer não depende do estatuto lógico ou empírico das “verdades”. Depende e cresce com a deliberação voluntária diante de dilemas humanos. No amor, partilhamos nossa humanidade.
Ademais, ser ateu não tem nada a ver com “exigências teóricas”, antes tem muito mais a ver com a recusa deliberada e existencial da ordem transcendente, infinita, que fundamenta a nossa finitude. O ateísmo legítimo, que cobra evidências empíricas e lógicas a respeito da existência de Deus, só pode se dar na tomada de consciência e recusa de não aceitar de Deus. Ateu nenhum conseguiu demonstrar que Deus não existe. E o ateu maduro, sério, sabe disso e mesmo assim diz “não” a Deus.
O vivo reconhecimento da hipótese “Há Deus” (ou “Não há Deus”) não diz respeito à propriedade lógica e científica dessa hipótese. Na verdade, diz respeito primeiro à relação que esse reconhecimento mantém com a experiência radical de um homem concreto vivendo (ou em busca de viver) uma vida significativa. Assim como a proposição “eu sou seu amigo” ou “eu te amo”.
Sendo assim, não interessa saber se a proposição “Deus existe” (ou Deus não existe) é racional ou irracional, pois o que está em jogo é o quanto essas hipóteses motivam crenças e, por isso, a disposição da vida de um homem para agir conforme sua concepção mais abrange de mundo. O estatuto da fé acompanha fundamentalmente o estatuto da liberdade e de quanto estamos dispostos a lidar com um grau generoso de incertezas. Amar é o ato mais puro de liberdade na incerteza com relação ao outro. Um ato que se resolve completamente em si mesmo e sabe de tudo o que está em jogo.
A tomada de consciência que nos permite afirmar ou negar Deus determina a concepção que teremos de nós mesmos. Quem diz acreditar em Deus mesmo sem “evidências” científicas, é porque reconhece seu status de criatura, de um ser que é dependente do Amor misericordioso de Deus para existir. Quem se recusa acreditar em Deus, pelo contrário, é porque recusa a se ver como criatura. Portanto, vê a si mesmo como um ser autossuficiente. Nesses termos, o ateísmo mais sério diz respeito a uma “revolta”: a revolta contra a própria condição humana.
Francisco Razzo
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