O texto a seguir foi extraído
do livro de Gerd Theissen - A religião do primeiros cristãos uma teoria do cristianismo
primitivo (2009, Edições Paulinas). O texto contém informações sobre a visão
dos primeiros cristãos sobre a obra redentora sobremodo mui excelente de
Cristo. O deleite da salvação deve ser a doçura da vida espiritual de todo o
homem regenerado que crê em Cristo como Senhor e Salvador
A MORTE DE CRISTO NA
PERSPECTIVA DA IGREJA PRIMITIVA
A morte de Jesus como “exemplum”
do comportamento divino e humano Uma primeira superação da morte de Jesus
consistiu em que nela se viu um ‘‘acontecimento necessário’’ — tão necessário e
tão pouco influenciável pelas pessoas como todo acontecimento querido por Deus
(Marcos 8:31; 14:21). Profecias e alusões nos escritos bíblicos possibilitaram
reconhecer essa necessidade divina da morte de Jesus (Marcos 14:49; Lucas 24;44-46).
Nessa interpretação, a fé na ressurreição podia ser facilmente integrada, à
medida que também a ressurreição de Jesus foi compreendida como acontecimento
necessário — predito nas Escrituras (I Corintios 15:3). Por isso, a morte de
Jesus transformou-se em passagem para a glória: “Não era preciso que o Cristo
sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lucas 24:26). Somente com tal
“passagem” é que a morte de Jesus poderia alcançar um sentido salvífico — e
certamente depois, quando Jesus foi compreendido como “precursor” (Hebreus
6,20) que havia aberto o caminho do céu para as pessoas que o seguiram (Hebreus
10:20). Uma segunda possibilidade de interpretação da morte de Jesus consistia
em incluí-lo na corrente do profetas mártires? Os profetas desde sempre se
depararam com resistência a sua mensagem e nisso perderam a vida. A parábola
dos vinhateiros expressa de modo alegórico essa idéia da morte violenta dos
profetas (Marcos 12;1-3; I Tessalonicenses
2;15). Jesus era um dos muitos profetas que deveriam deixar sua vida em
Jerusalém (Lucas 13:34; 11:49-51). A ressurreição de Jesus podia ser integrada
nessa concepção na qual era incluída como evento-contraste à morte do mártir.
Na parábola dos vinhateiros, ela foi secundariamente inserida mediante a
citação escriturística da pedra rejeitada que se tomou, por Deus, pedra angular
(Salmo 118;22 e Marcos 12:10). Um esquema-contraste semelhante marca os
sumários dos Atos dos Apóstolos (Atos 2:22-24; 4:10,30-41 ; 13:27-29). Uma variante
para o contraste entre rejeição da parte das pessoas e escolha da parte de Deus
é a oposição entre o auto-rebaixamento de Jesus e sua elevação por Deus tal
como está contido no hino aos Filipenses (Filipenses 2:6-11). Aqui é importante
também: a morte alcança sentido salvífico somente pela integração da
ressurreição; que Deus escolhe os humildes e rejeitados e torna-se a imagem da
esperança para todos os humilhados e excluídos (cf. I Corintios 1:18-20), nos
quais Deus age de forma análoga. Uma terceira interpretação da morte de Jesus
encontra-se ali onde dela se fala com os motivos da “passio iusti” O sofrimento
de Jesus é apresentado, portanto, com o auxílio de passagens dos salmos de
lamentação ou do servo de Deus sofredor. Toma-se modelo para o sofrimento dos
cristãos. Implicitamente, a história da paixão contém essa interpretação, de
forma evidente, acima de tudo, a primeira carta de Pedro (I Pedro 2:21-25). Em
seus sofrimentos, os cristãos deviam sentir-se ligados a Cristo. Também nessa
interpretação, o sofrimento só obtém sentido salvífico mediante a inserção da
ressurreição de Jesus: pois, na verdade, o sofrer e o morrer com Cristo são
transcendidos pela esperança de uma nova vida. A morte de Jesus, em si, nesse
contexto, não possui nenhum caráter salvífico. Somente a superação da morte
enseja a salvação: a noção de uma “conformitas” entre Cristo e os cristãos. Os
cristãos não padecem a própria morte por outros. Seu morrer com Cristo não
opera nenhuma salvação. Nas interpretações da morte de Jesus como sacramentum
não existe nenhuma analogia entre o agir de Deus, de Cristo e do ser humano; ao
contrário, acentua-se exatamente a distância entre Deus e o ser humano. A ordem
da “justiça”, que liga Deus e o homem, é profundamente perturbada pela
injustiça humana: sua restauração exigia a “expiação”. O relacionamento pessoal
entre Deus e homem tomou-se “inimizade”, de modo que Deus e homem precisam ser
“reconciliados”. Em primeiro lugar, situa-se aqui a interpretação expiatória da
morte. Quando Paulo, em Romanos 3:25, escreve a respeito de Cristo, que “Deus O
expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé”,
então ele está se referindo ao padecer vicariamente a ira de Deus previamente jurada
sobre todos os pecadores (Romanos 3:18-20). Sobre o crucificado, foi
pronunciado um juízo de aniquilamento de Deus. Não se pode manter distante do
homem moderno essa escandalosa concepção das declarações expiatórias do Novo
Testamento. Paulo pode dizer que Deus, mediante a morte de Jesus, condenou “o
pecado em sua carne” (Romanos 8;3), ou que Jesus, por nós, ter-se-ia tomado
“maldição” (Galatas 3:13) e “pecado” (2 Corintios 5:21). Encontramos aqui uma
noção que não inclui obrigatoriamente a ressurreição. Pois Paulo não prossegue
suas afirmações à medida que diz que Cristo tomou-se “expiação”, “maldição”, ou
“pecado”, a fim de que ele superasse esse mal mediante a ressurreição. À
declaração sobre sua morte segue-se, ao contrário, uma afirmação positiva para
os crentes: sua morte expiatória é para eles justificação (Romanos 3:26; 2Corintios
5:21) e bênção (Galatas 3:14). Contudo, a ressurreição pode ser integrada da
forma mais evidente possível na imagem do culto celeste na carta aos Hebreus.
Jesus sacrifica-se como vítima expiatória, a fim de poder atravessar a cortina
que dá acesso ao santo dos santos. Seu caminho para o céu é o ato salvífico por
excelência. Mas também em Paulo encontramos uma ampliação da noção de expiação
até a ressurreição, como ainda haveremos de ver. Uma terceira concepção análoga
é a do resgate. Enquanto na interpretação expiatória, trata-se de uma
libertação de um perigo ameaçador mediante o próprio Deus, a concepção do
resgate permite pensar na libertação de um poder estranho. O fundamento
evidente é a redemptio ab hostibus — o resgate das mãos dos inimigos.A esse
respeito, permanece obscuro se a ira de Deus sobre os pecados tenha-se se
tomado um poder hostil independente ou se, de fato, pensava-se em poderes
demoníacos independentes de Deus (Gálatas 3:3; 4:5; I Coríntios 6,19-20; 7,23;
Mc 10,45 etc.). Também essa concepção do resgate não inclui necessariamente a
ressurreição, mas pode ser expandida por ela. A ressurreição transforma-se,
então, em vitória sobre os poderes hostis, algo assim como na noção de que o
ressuscitado destruiu o título de dívida lavrado por eles, desarmou seus inimigos
e triunfou sobre eles (Colossenses 2,14). Ou que ele, com seu sangue, “salvou”
os cristãos e fez deles reis e sacerdotes — e reina eternamente (Apocalipse 1:4-20).
Contudo, essa concepção de Jesus Victor pode ser encontrada também
independentemente da concepção de resgate (cf I Pedro 3:18-22; João 12:27-33).
Numa terceira variante, o “morrer pelos pecados” ou “por nós” pode também
aparecer como doação de amor. Enquanto na concepção expiatória (em sentido
estrito) domina a ameaça da ira de Deus, e na “concepção-resgate” a ameaça de
outros poderes, agora a morte de Jesus aparece como expressão do amor de Deus,
ameaçado, acima de tudo, pela inimizade das pessoas. Aqui, a ressurreição pode
aparecer, o mais antecipadamente possível como parte constitutiva do evento
salvífico. O amor visa à reconciliação entre parceiros inimizados. A
reconciliação, porém, pressupõe a existência deles. Onde Paulo fala de uma
doação da vida de Jesus, fala sempre também da ressurreição de Jesus (cf esp. Romanos
5:6-7; 8:31-33; 2Corintios 5:14-16). (Extraído
de: A Religião dos Primeiros Cristãos. Gerd Thiessen. Edições Paulinas. Paginas
201 a 204)
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