(Autor Desconhecido)
Quando se traça um ideal, pode-se vislumbrar o que se pretende, mas é preciso evitar o impossível.
Aristóteles
Na obra As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, encontramos este interessante diálogo entre o imperador Kublai Khan e o explorador Marco Polo:
– Entretanto, construí em minha mente um modelo de cidade do qual extraí todas as cidades possíveis – disse Kublai. – Ele contém tudo o que vai de acordo com as normas. Uma vez que as cidades que existem se afastam da norma em diferentes graus, basta prever as exceções à regra e calcular as combinações mais prováveis.
– Eu também imaginei um modelo de cidade do qual extraio todas as outras –
respondeu Marco. – É uma cidade feita só de exceções, impedimentos, contradições,
incongruências, contra-sensos. Se uma cidade assim é o que há de mais
improvável, diminuindo o número de elementos anormais aumenta a probabilidade
de que a cidade realmente exista. Portanto, basta subtrair as exceções ao meu
modelo e em qualquer direção que eu vá sempre me encontrarei diante de uma
cidade que, apesar de sempre por causa das exceções, existe. Mas não posso
conduzir a minha operação além de um certo limite: obteria cidades verossímeis
demais para serem verdadeiras. (CALVINO, 2004, p. 67).
Na passagem acima, as duas personagens desenvolvem suas reflexões a partir de dois extremos que se mostram ao mesmo tempo dependentes e complementares: o modelo e a realidade. Com base na observação ou no estudo de cidades reais, tanto o governante quanto o explorador idealizam modelos dos quais seria possível extrair as mais diversas formas de comunidades humanas. Esse esforço quase tipológico assume o caráter de um fluxo imaginativo que, cercado pelos limites da verossimilhança e da completa abstração, tangencia em diferentes pontos a esfera do real. Independentemente de como os extremos se conectam, em ambos os discursos o afastamento do modelo redunda na aproximação do mundo experimental.
Parece-nos que a idealização social evidenciada pelas personagens de Calvino e a conseqüente instrumentalização dessas estruturas como forma de análise e de problematizarão da realidade sintetizam, ainda que em termos abstratos, as bases do pensamento utópico. Os modelos de Kublai Khan e Marco Polo resgatam uma tradição na qual poderíamos incluir também as cidades-estado da Grécia, as primeiras colônias americanas, as comunidades fundadas pelos transcendentalistas e os nichos anarquistas, assim como os textos literários e filosóficos de Platão, Thomas More, Campanella e Cabet. Esses modelos de construção, evidentemente distintos em seus princípios e pontos de vista, denotam um mesmo desejo de reformar o mundo e redirecionar o presente para um novo futuro.
Assim, percebemos a constância e a força do utopismo como componente do processo evolutivo das sociedades históricas, seja como projeto de renovação, seja como texto imaginativo. A utopia é, sem dúvida, um dos signos da inquietude, da insatisfação, da decepção e da esperança. Perdidas no fluxo do tempo ou na imensidão do espaço, as estruturas modelares podem assumir a forma de um mosteiro, de uma tribo indígena, de um paraíso perdido em tempos imemoriais ou de uma babilônia tecnicista muitos séculos a nossa frente. Ainda que as variações representacionais sejam numerosas, certos aspectos são comuns a todas as criações utópicas.
Primeiramente, o ideal utópico é sempre gerado como um conceito universalizante. Os utopistas – ou grande parte deles – acreditam que suas reflexões e suas representações atendem às expectativas da coletividade circundante, a qual, em última instância, serve como indicadora dos anseios de toda a humanidade. Assim, a criação utópica universaliza princípios e conceitos particulares.
Em segundo lugar, a perfeição desejada pelos utopistas redunda em um congelamento evolutivo das sociedades quando o progresso interrompe o seu fluxo e os deveres dos governantes passam a se concentrar sobre a gestão e a preservação do sistema estabelecido. A história torna-se estática em modelos nos quais apenas os indivíduos são transitórios.
Finalmente, não importa quanto o modelo se afaste espacial ou temporalmente da realidade na qual ocorre a sua gênese, as suas raízes estão sempre plantadas no tempo presente da sociedade. A intenção do utopista é criar uma representação do melhor regime, a fim de atrair a atenção dos indivíduos para os problemas do mundo que os cerca. O pensamento utópico é sempre um método analítico e comparativo. Como se verifica no diálogo entre Kublai Khan e Marco Polo, a observação de um ideal social pode dar origem a todas as outras estruturas existentes, em um grau maior ou menor de distanciamento, quando se evidenciariam as imperfeições a serem solucionadas. Sem esse mecanismo de espelhamento crítico da realidade, a utopia perde a sua essência problematizadora e a sua própria razão de existir.
Entretanto, é importante notar que os modelos propostos pelas personagens de As Cidades Invisíveis são diretamente opostos em relação à forma como foram concebidos. Enquanto Kublai Khan idealiza uma cidade onde o atendimento irrestrito às normas proporcionaria um estado de completa harmonia, Marco Polo descreve uma comunidade construída com base em aspectos negativos e contraditórios. Assim, se para o imperador a harmonia deveria ser buscada por meio da aproximação de sua cidade-modelo, para o aventureiro, o caminho para o melhor regime está no afastamento do ideal por ele concebido. Percebemos, então, que a oposição entre essas criações se dá pela positividade da primeira diante da negatividade da segunda. Dessa forma, poderíamos dizer que encontramos simultaneamente um utopista e um distopista.
Notamos, dessa maneira, que as distopias surgem como um contraponto ao otimismo e ao universalismo das produções utópicas, tendo a sátira como o principal dispositivo crítico. O universo representado pelos distopistas desmitifica de forma contundente a idealização de uma estrutura social capaz de prover a humanidade com um estado permanente de harmonia, estabilidade e bem-estar. Para esses autores, os grupos sociais e as suas respectivas organizações devem ser analisados à luz de suas características particulares, reestruturadas segundo as contingências de seu próprio desenvolvimento histórico. Nesse sentido, a restrição colocada por Marco Polo no final de sua fala parece-nos extremamente significativa: a personagem percebe que o seu processo de derivação de cidades a partir do modelo negativo deve cessar no momento em que se aproxima demais da perfeição utópica e perde, portanto, contato verificável com a realidade.
Segundo os distopistas, a projeção de um modelo de sociedade a ser atingido pode gerar consequências desastrosas e, possivelmente, irreversíveis. Diante dessa premissa, um dos principais argumentos desses pensadores é o fato de que as criações utópicas, ao universalizarem os aspectos tidos como desejáveis em uma comunidade, desconsideram não apenas as particularidades culturais de cada povo ou nação, mas também a liberdade. Como afirma Robert C. Elliot, “nenhuma das utopias clássicas abriu espaço para a liberdade [...]. Da mesma forma, Thomas More, Campanella, Cabet e outros falharam em proporcionar liberdade individual”116 (ELLIOT, 1970, p. 90).
Assim, a imposição de princípios e valores pode ser aplicada como o meio apropriado para atingir o regime modelar. A liberdade pode ser substituída pela homogeneização, em nome de uma sociedade idealizada por poucos e para um sucesso ao qual muitos devem se submeter. Nesse sentido, o desejo de reconstruir o espaço social acaba assumindo características totalitárias.
George Orwell, em particular, acompanhou durante a sua vida diversos exemplos de massificação ideológica em nome da construção de um projeto social utópico, como a revolução espanhola, a ascensão do socialismo soviético e o desenvolvimento do nazismo. Todas essas experiências, registradas em diversos ensaios e epístolas, serviram como base para a concepção daquela que viria a ser considerada a sua maior obra, em que Orwell satiriza a perigosa supressão da liberdade individual presente nas utopias e as características dos governos totalitários que, no conturbado período do pós-guerra, pareciam constituir a mais forte tendência de uma nova ordem mundial.
A divisão da obra em seções cumpre uma função não apenas estrutural, mas também essencialmente temática. No chamado Livro I, o autor define as bases do espaço ficcional, evidenciando o conflito inicial entre Winston e a sociedade e suspendendo a ação até o início da segunda parte como forma de situar o leitor e fazê-lo entender que espécie de batalha será travada pelo protagonista. No segundo e terceiro livros, Orwell dá continuidade ao enredo e, ao mesmo tempo, aprofunda o conhecimento do leitor em relação às especificidades do regime distópico e da psique da personagem, abrindo caminho para o marcante desfecho do romance.
Além disso, a referida divisão equivale às etapas da trajetória de Winston Smith em sua luta pela própria individualidade. A revolução solitária da personagem se desenvolve por meio de pequenos atos que vão assumindo maior importância e maior gravidade no decorrer da narrativa. A escrita do diário no Livro I evolui para o romance com Júlia no Livro II que, por sua vez, leva o protagonista a buscar o apoio da Fraternidade, o que o conduz inevitavelmente aos porões do Ministério do Amor no Livro III. Essa progressão é acompanhada pela crescente e, em certa medida, lúdica esperança da personagem de que seja realmente praticável lutar contra o Partido. Tal sentimento é compartilhado pelo leitor que, em grande parte devido à caracterização do protagonista como um indivíduo comum, estabelece laços de reconhecimento com Winston.
Entretanto, assim como as utopias, as criações distópicas carregam um ideal de perfeição que não tolera a existência de desvios comportamentais dos indivíduos sob o jugo dos governos modelares. Nesse contexto, a revolta de Winston esteve, desde o início, fadada ao insucesso. A única Verdade a ser descoberta e o único Amor a ser experimentado pelos cidadãos da Oceania são revelados ao protagonista nos porões do Ministério do Amor: a terrível verdade da dor e o amor incondicional pelo Grande Irmão.
Diante disso, poderíamos questionar a relevância da representação de um movimento revolucionário individual e malogrado que em nada altera a macroestrutura da sociedade distópica. A resposta para esse questionamento é, a nosso ver, composta de dois aspectos.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que George Orwell estava decepcionado, estando muito preocupado com os resultados atingidos pelos governos totalitários no século XX. O fascismo, o nazismo e o stalinismo surgiam ao mesmo tempo como fantasmas do passado e sombras que poderiam comprometer o futuro. Assim, o autor escreve sua obra como um alerta, tanto para os seus contemporâneos, quanto para as gerações futuras, do perigo latente na ortodoxia política e na aceitação de um ideal de sociedade que oferece estabilidade em troca da liberdade individual. Nesse sentido, o romance de Orwell e o diário de Winston se equivalem no propósito de criar um registro histórico e estabelecer uma comunicação com leitores de épocas vindouras que, supostamente, não conheceriam de forma tão profunda a terrível ameaça do totalitarismo.
É importante salientar, entretanto, que os elementos apresentados em 1984 não ficam restritos aos regimes totalitários. Atualmente, as tendências do pensamento sociopolítico por todo o mundo se mostram avessas aos governos ditatoriais e autocráticos, posicionamento que é apoiado pela maioria das nações do ocidente. Mas temos que admitir que o capitalismo, em sua constante evolução técnica e tecnológica, assimilou e adaptou certos mecanismos disciplinares que aproximam a nossa sociedade da Oceania de Orwell. Os conflitos externos são analisados com base em níveis de popularidade dos governantes. A privacidade é constantemente cerceada pela insegurança ou pela mídia, transformando-se ao mesmo tempo em produto e marketing televisivo. A publicidade e a propaganda invadem incessantemente a mente dos indivíduos, condicionando atitudes e opiniões. O trabalho subtrai as pessoas de seu tempo e de seus próprios corpos, já quase docilizados pela esmagadora rotina diária. A história foi substituída pelo bombardeio ininterrupto de informações as quais, nascendo já marcadas pela efemeridade, não criam raízes na consciência coletiva e são sumariamente substituídas no próximo noticiário. O fluxo histórico é desarticulado pela agilidade jornalística inerente à era da desinformação.
Diante disso, estaríamos assim tão longe de 1984?
A resposta para essa pergunta nos leva ao segundo aspecto que anteriormente nos propusemos a discutir. A importância da revolução solitária de Winston Smith no romance deriva de sua representatividade como um ato essencialmente humano em um regime que busca aniquilar qualquer resquício de humanidade. Ainda que a derrota componha o capítulo final da narrativa de Orwell, o heroísmo do protagonista se concentra na individualidade de seus atos e no desejo de preservar a sua própria consciência. Em termos gerais, é plausível afirmar que a revolta da personagem nada significou para a integridade da sociedade distópica. Mas será possível afirmar o mesmo em relação à percepção daqueles que acompanharam a sua trajetória? Se Winston se sagrasse de alguma forma vitorioso, o texto manteria o mesmo impacto sobre seus interlocutores? O alvo de Orwell nunca foi o Partido, mas os leitores de sua obra. O autor demonstrou que a luta pelo direito de possuir uma identidade é uma atitude essencialmente humana e valorosa, independentemente de a quem pertença a vitória final.
Enquanto tais ações forem possíveis, acreditamos que ainda estaremos distantes de 1984. Contudo, é necessário reafirmar diariamente o compromisso com a nossa própria individualidade. A democracia deve ser valorizada pela voz e pelos atos. Não basta possuir liberdade de expressão, é preciso saber o que fazer com ela. O poder individual deve ser reconhecido para que, mesmo diante da mais terrível distopia, um pequeno gesto de independência possa servir como um sinal de esperança.
Como nos conta Ítalo Calvino:
O Grande Khan já estava folheando em seu
atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas
maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Brave New World.
Disse:
– É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá
no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo:
– O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está
aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das
pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de
percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas:
tentar reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e
preservá-lo, e abrir espaço. (CALVINO, 2004, p. 150).
Em um contexto social, seja ele ficcional ou empírico, no qual impera a microfísica do poder, os mínimos atos podem representar o caminho para a liberdade.
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